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9 de dez. de 2011

Amo as açucenas

Amo as açucenas na branquíssima
vertigem do princípio do mundo.
Ninguém pode amá-las assim
nas madrugadas de linho e de nácar.
Ninguém subiu as vertentes da colina
mais íngreme com um vestido de noiva
amarrado ao corpo.
O abandono recortado no ar.
Os desejos entorpecidos na alvura dos seios.
Os guizos das cabras reclamando o cio.
A cera das colmeias na greta dos lábios.
O fascínio da luz a incidir nas hastes mais altas.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

10 de nov. de 2011

AS CORES DIZEM O TEMPO

As cores dizem o tempo,
o granizo que embranquece as arestas do granito,
o hortelã respirando pequenas flores de sabor a sul.

Ó a antiga sapiência das árvores
e dos caminhos
e da plenitude nas planícies de verdura!

Como não hei-de segredar o teu nome
ó bonina de incenso, em noites de paixão,
nos pântanos que parecem eternizar os teus segredos?

És o pólen e a cegueira
de espirais hipnóticas de paz e medo,
em águas nascentes de musgo e de frescura.

És a vertigem duns olhos feridos pelo orvalho
das manhãs, ao cair da tarde

e eu te invoco na busca dos limites
que fazem o fascínio, a vigília perturbada
do teu violoncelo tocando ao vento.


Vieira Calado
Poemas Soltos & Dispersos, 2º volume

21 de set. de 2011

Poema de Isabel Meyrelles


Encontros que não marcaste
em ruas que desconheces
eu esperarei
até que as noites deslizem
sobre mim e eu fique transformada
em arvore


Isabel Meyrelles
Palavras Noturnas & Outros Poemas

17 de ago. de 2011

ILE ST. LOUIS



Farei do silêncio
uma proa de barco
da tua ausência um rio
d’arvores afogadas


Isabel Meyrelles
Palavras noturnas & outros poemas
Escrituras Editora, pag 50.

28 de jul. de 2011

ISABEL MEYRELLES


Nas claras tardes de verão
em que as arvores tem uma nitidez de desenho à pena
há um silêncio de expectativa
como se uma pedra tivesse parado no ar
ou uma fonte deixasse de correr,
nas claras tardes de verão.

..................................

Apenas as rosas vermelhas
continuam sendo
umas simples rosas vermelhas

Isabel Meyrelles
In ‘Palavras Noturnas e Outros Poemas’

20 de jun. de 2011

Ética

Vou falhando as pequenas coisas
que me são solicitadas.
Sentindo que as ciladas
se acumulam cada vez que falo.
Preferi hoje o silêncio.
A ausência de equívocos
não é partilhável.
No inegociável deste dia,
destituo-me de palavras.
O silêncio não se recomenda.
Deixa-nos demasiado sós,
visitados pelo pensamento.


Luís Quintais
in «Lamento», 1999

15 de jun. de 2011

A lancha negra


Para velar da luz a face refulgente
Nuvens pesadas vão correndo acumuladas,
E, na treva do oceano, as vagas compassadas
Passam, uma por uma, interminavelmente.

Mais do que a sombra, escura, avulta de repente
A lancha negra, vem... dos remos as pancadas
Ferem o mar, que chora, em gotas prateadas
As lágrimas sem fim, da sua dor pungente.

Eila a meus pés, a lancha, e nela, silenciosa,
Embarca a doce e branca imagem de outra idade!
E vejo-a ir... sumir-se... a lancha misteriosa!...

Então, dentro de mim, num soluço, a saudade
Murmura, a perscrutar a sombra tenebrosa:
Nunca mais voltarás, nunca mais! Mocidade.

Adelina Lopes Vieira
Em: A Faceira, ano 1, n. 4, nov. 1911.

Adelina Amélia Lopes Vieira nasceu em Lisboa em 20 de setembro de 1850 e morreu no Rio de Janeiro em 1922(?). Escritora, contista, professora e teatróloga, era filha de Valentim José da Silveira Lopes e de Antonia Adelina. Seus pais vieram para o Brasil quando ela tinha um pouco mais de um ano. Ficou conhecida no Brasil como autora de contos para crianças. Escreveu com sua irmã Júlia Lopes de Almeida Contos infantis (1886). Formou-se professora pela Escola Normal do Rio de Janeiro. Escreveu peças de teatro, foi tradutora e colaboradora de periódicos, como o jornal O Tempo, onde defendia a política de Floriano Peixoto, e a revista A Mensageira. Traduziu A terrina, comédia em um ato, de Ernesto Hervelly. Publicou o livro Margaritas, no Rio de Janeiro em 1879 e o conto Destinos, publicado em 1890. Escreveu peças teatrais como A viagem de Murilo, drama em verso, As duas doses, drama, e Expiação, drama em três atos e um prólogo. Na revista A Faceira encontramos de sua autoria o soneto A lancha negra.

13 de jun. de 2011

DANÇA DO VENTO


O vento é bom bailador,
baila, baila e assobia,
baila, baila e redopia
e tudo baila em redor!

E diz às flores, bailando:
- Bailai comigo, bailai!
E elas, curvadas, arfando,
Começam, débeis, bailando,
E suas folhas tombando
Uma se esfolha, outra cai,
e o vendo as deixa, abalando,
- e lá vai!...

O vento é bom bailador,
baila, baila e assobia,
baila, baila e redopia
e tudo baila em redor!

E diz às folhas caídas:
- Bailai comigo, bailai!
No quieto chão remexidas,
as folhas, por ele erguidas,
pobres velhas ressequidas
e pendidas, como um ai,
bailam, doidas e chorando,
e o vento as deixa, abalando,
- e lá vai!...

Refrão

E diz às ondas que rolam:
- Bailai comigo, bailai!
E as ondas no ar se empolam,
em seus braços nus o enrolam,
e batalham,
e seus cabelos se espelham
nas mãos do vento, flutuando,
e o vento as deixa, abalando,
- e lá vai!...

Afonso Lopes Vieira
( Portugal 1878-1946)

10 de jun. de 2011

147



Olhai que ledos vão, por várias vias,
Quais rompentes liões e bravos touros,
Dando os corpos a fomes e vigias,
A ferro, a fogo, a setas e pelouros,
A quentes regiões, a plagas frias,
A golpes de Idolátras e de Mouros,
A perigos incógnitos do mundo,
A naufrágios, a pexes, ao profundo.

Luis Vaz de Camões
De os Lusiadas

(1.524 — 10 de Junho de 1.580)

8 de jun. de 2011

A um poema

A meio deste inverno começaram
a cair folhas demais. Um excessivo
tom amarelado nas imagens.
Quando falei em imagem
ia falar de solo. Evitei o
imediato, a palavra mais cromática.

O desfolhar habitual das memórias é
agora mais geral e também mais súbito.
Mas falaria de árvores, de plátanos,
com relativa evidência. Maior
ou menor distância, ou chamar-Ihe-ei
rigor evocativo, em nada diminui

sequer no poema a emoção abrupta.
Tão perturbada com a intensa mancha
colorida. Umas passadas hesitantes.
entre formas vulgares e tão diferentes.
A descrição distante. Sobretudo esta
alheada distância em relação a um Poema.



FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
Três Rostos

3 de jun. de 2011

POEMA ÀS FLORES DE OUTONO


Agora vou reclinando o corpo
entre a terra e as estrelas.

O espaço é breve
para a brisa do mar
que ainda soa.

E no entanto adormeço
no meu sonho,
sereno de harmonias

incendiando o fino pó
da terra
com estas flores violentas,
exíguas, do outono.


Vieira Calado

10 de mai. de 2011

PALCO


Dadas as mãos,
Enlaçados os dedos,
Unidos os destinos,
Ficámo-nos extáticos, frente ao altar do universo,
Como se fora no princípio do mundo!...

- No começo da Vida!

Um canto de ave, ante a manhã, voou sobre as nossas cabeças
E perante o Sol que rompia no horizonte largo
Gozámos o poema inédito do Primeiro Dia,
Renascido das cinzas dum mundo velho e apodrecido
Como Eva redentora saída das costas inconscientes do novo Adão.


Vasco Miranda
De Luz na Sombra (1946)

8 de mai. de 2011

A CHEGADA DO INVERNO


Nem sempre
a vida acolhe ou alimenta
os nomes do passado, o seu abismo
repetido num sonho, na mais lenta
assombração, no mais íntimo sismo

Do que chamamos alma. Não existo
sem essa febre mansa que relembro
enquanto as nuvens cobrem tudo isto
com o frio escuro de um dezembro

Longe de mim, de ti, de qualquer lei
ou juízo a que demos um sentido:
o que finjo saber é o que não sei
e as palavras colam-se ao ouvido.


Fernando Pinto do Amaral
(Lisboa, 12 de Maio de 1960)

6 de mai. de 2011

VENTO NO ROSTO


À hora em que as tardes descem,
noite aspergindo nos ares,
as coisas familiares
noutras formas acontecem.

As arestas emudecem.
Abrem-se flores nos olhares.
Em perspectivas lunares
lixo e pedras resplandecem.

Silêncios, perfis de lagos,
escorrem cortinas de afagos,
malhas tecidas de engodos.

Apetece acreditar,
ter esperanças, confiar,
amar a tudo e a todos.


António Gedeão
Movimento Perpétuo
“in” Poesias Completas

...


Ao longo da muralha que habitamos
Há palavras de vida há palavras de morte
Há palavras imensas,que esperam por nós
E outras frágeis,que deixaram de esperar
Há palavras acesas como barcos
E há palavras homens,palavras que guardam
O seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras,surdamente,
As mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras e noturnas palavras gemidos
Palavras que nos sobem ilegíveis À boca
Palavras diamantes palavras nunca escritas
Palavras impossíveis de escrever
Por não termos connosco cordas de violinos
Nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
E os braços dos amantes escrevem muito alto
Muito além da azul onde oxidados morrem
Palavras maternais só sombra só soluço
Só espasmos só amor só solidão desfeita

Mário Cesariny

PRAIA DO ESQUECIMENTO


Fujo da sombra; cerro os olhos: não há nada.
A minha vida nem consente
rumor de gente
na praia desolada.

Apenas decisão de esquecimento:
mas só neste momento eu a descubro
como a um fruto rubro
de que, sem já sabê-lo, me sustento.

E do Sol amarelo que há no céu
somente sei que me queimou a pele.
Juro: nem dei por ele
quando nasceu.


David Mourão-Ferreira
in "Tempestade de Verão"

2 de mai. de 2011

Para ti


ia escrever.
ia escrever letras de fogo
com as lágimas da saudade
que alimentam a fornalha da vontade.
ia escrever!
ia escrever o teu nome no pulsar do tempo.
mas não escrevo.
não escrevo porque sou o teu nome!

Vicente Ferreira da Silva

24 de mar. de 2011

'Talvez existam anjos com olhos de musgo'


Caminhamos por entre as árvores
com a boca a saber a menta e a malvas.
Trazemos nas mãos um herbário
de tão fugaz esperança
que nenhuma outra se tece sem desvios
na dobra do peito.
Talvez existam anjos com olhos de musgo
à beira dos abismos por onde se esgueiram
os dias que nos roubam a eternidade.
Talvez a turbulência verde na borda dos ribeiros
unja de seiva a passagem do tempo.

Graça Pires
De 'A incidência da luz', 2011

Do blog da escritora, poema de seu último livro,
lançado em 19/03/2011 - Editora Labirinto- Portugal

1 de mar. de 2011

Um poema de Vicente Ferreira da Silva


é no silêncio
que se sente a essência,
que se percebe que nem tudo reluz,
mas que há esperança
na existência.
...
é no silêncio
que se pensa a consciência,
que se tenta ascender a humanidade
ao encontro da lembrança.

é no silêncio
que o oleiro molda o barro em luz,
na amplitude dum pequeno gesto

e também é no silêncio,
em silêncio,
que se ora ao Criador

Vicente Ferreira da Silva

Ser, parecer


Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida

Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos


Mia Couto

9 de fev. de 2011

Viagem


Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro
Era longe o meu sonho e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos.)

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

Miguel Torga

Ânsia


Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma

As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos
tivéssemos trocado
para morrer vivendo

Mia Couto

8 de fev. de 2011

Manhã


Estou
e num breve instante
sinto tudo
sinto-me tudo

Deito-me no meu corpo
e despeço-me de mim
para me encontrar
no próximo olhar

Ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão

Nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira

A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos

Educadamente mortos

Mia Couto

Morte silenciosa


A noite cedeu-nos o instinto
para o fundo de nós
imigrou a ave a inquietação

Serve-nos a vida
mas não nos chega:
somos resina
de um tronco golpeado
para a luz nos abrimos
nos lábios
dessa incurável ferida

Na suprema felicidade
existe uma morte silenciada

Mia Couto